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13 de maio de 2008

A ética comunista de Che Guevara

A ética comunista de Che Guevara

Os valores éticos na sua concepçom do comunismo e na sua crítica do modelo soviético

Michael Löwy

Nom há dúvida que, quarenta anos depois da sua morte, Ernesto Guevara continua a ser umha referência, a escala planetária, para todos aqueles e aquelas que rejeitam a infámia da ordem –imperial e capitalista– estabelecida e acreditam que “um outro mundo é possível”. Há algo na vida e na mensagem do médico/guerrilheiro argentino/cubano que ainda fala às geraçons de 2007. De outro modo, como explicar esta pletora de obras, artigos, filmes e debates? Nom é um simples efeito comemorativo do aniversário: quem se interessava, em 2003, polos cinqüenta anos da morte de José Estaline? Para além da linguagem, da terminologia, de certos temas e obsessons datadas, fica na figura do Che Guevara um núcleo incandescente que continua a abrasar.

Isto procede de modo particular para a América Latina. A herança do guevarismo, como sensibilidade revolucionária e como resistência irredutível à ordem estabelecida, resta vigorosa na esquerda radical, e em certos movimentos sociais, como o América Latina. (Movimento dos Camponeses Sem Terra) do Brasil ou os piqueteros argentinos. A componente guevarista está também bem presente na origem do grupo que forma o EZLN (Exército Zapatista de Libertaçom Nacional).

O que está a acontecer na Bolívia, país em que Guevara derramou o seu sangue num derradeiro combate? No seu discurso de investidura presidencial em Janeiro de 2006, Evo Morales rendeu homenagem aos “nossos antepassados que luitárom”: “Tupak Katari para restaurar o Tahuantinsuyo, Simón Bolívar para a grande pátria e Che Guevara para um mundo novo feito de igualdade”.

Nas luitas emancipadoras na América Latina, apercebem-se os traços, bem visíveis, bem invisíveis, do pensamento do Che. Está presente tanto no imaginário colectivo dos combatentes, como nos seus debates a respeito dos métodos, da estratégia e da natureza da luita. Pode-se considerar como um dos fios vermelhos com que se tecem, da Patagónia ao Rio Grande, os sonhos, as utopias e as acçons revolucionárias.

Sem dúvida, existem muitas razons para esta sobrevivência de Guevara na entrada do século XXI, mas umha delas é certamente a importáncia da dimensom ética na sua vida e pensamento, nos seus escritos e nos seus actos. Eu proponho que se designe por umha ética comunista: “comunista” nom no senso estreito de aderir a um partido político –e menos ainda de partidário da URSS (senso usual da palavra na linguagem da Guerra Fria), aliás na significaçom originária do termo, tal como Marx e Engels a formulam em O Manifesto Comunista de 1848. Umha significaçom que reenvia aos séculos de luitas de classes, e de combates inspirados polo que Ernst Bloch chamava O Princípio Esperança, isto é, o sonho de umha marcha em pé da humanidade. O comunismo de Marx, que era também o de Lenine e Trotsky em Outubro de 1917, de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht em Janeiro de 1919, de António Gramsci, de Júlio Mella, de José Carlos Mariátegui, de Farabundo Martí, e de tantos outros pensadores e combatentes, nom pode encerrar-se dentro de algum muro, e ainda menos no que caiu em Berlim em 1989.

Antes de Guevara, Mariátegui foi um dos escassos marxistas latino-americanos em atribuir um lugar central à ética na sua interpretaçom do materialismo histórico. No seu livro (póstumo) Defensa del marxismo (1930) dedica muitas páginas à funçom ética do socialismo –publicadas em Cuba no primeiro número da revista Tricontinental– que concluem com esta afirmaçom: a ética socialista “nom surge mecanicamente do interesse económico: ela afirma-se na luita de classes, dada com um espírito heróico, umha vontade apaixonada”. Nom sabemos se o Che conhecia este texto de Mariátegui, tam próximo das suas ideias; nom está excluído que o tivesse lido, pois a sua companheira dos anos 50, a jovem peruana Hilda Gadea, lhe emprestara os escritos de Mariátegui.

A ética comunista de Che Guevara, humanista e revolucionária, estava fundada em alguns valores essenciais: a liberdade (isto é, a libertaçom de toda opressom política ou económica), a igualdade, a solidariedade entre indivíduos e entre povos, a democracia revolucionária, o internacionalismo. A sua procura de um modelo alternativo vai inspirar, a partir de 1963, a tentativa de formular outra via ao socialismo, mais radical, mais igualitária, mais fraternal.

O motor essencial desta procura de um caminho novo –para além de questons económicas específicas, sobre as quais havemos de voltar– é o convencimento de que o socialismo (o comunismo) nom tem senso, e nom pode triunfar, de nom representar um projecto de civilizaçom, umha ética social, um modelo de sociedade totalmente antagónico com os valores do individualismo mesquinho, do egoísmo feroz, da competitividade, da guerra de todos em contra de todos do sistema capitalista, este mundo em que “o ser humano é o lobo do ser humano”.

Para Guevara, a construçom do socialismo é inseparável de certos valores éticos, contrariamente ao que proclamam as concepçons economicistas –desde Estaline até Krutchev e os seus sucessores– que nom se interessam mais que polo “desenvolvimento das forças produtivas”. Na sua célebre entrevista com o jornalista Jean Daniel (Julho de 1963) observava, no que seria umha crítica implícita ao “socialismo real”: “o socialismo económico, sem a moral comunista, nom me interessa. Nós luitamos contra a miséria mas, ao mesmo tempo, contra a alienaçom. (…) Caso o comunismo ignore os factos de consciência, pode ser um método de distribuiçom, mas nunca umha moral revolucionária”.

Caso o socialismo queira luitar contra o capitalismo e vencê-lo no seu próprio terreno, o terreno do produtivismo e do consumismo, ao empregar as suas próprias armas –a forma mercantil, a concorrência, o individualismo egoísta– está condenado ao fracasso. Nom se pode dizer que Guevara avisou do desabamento da URSS mas, de certa forma, intuiu que um sistema “socialista” que nom tolera as divergências, que nom representa valores éticos novos, que pretende imitar o seu adversário e que nom possui umha outra ambiçom que “alcançar e ultrapassar” a produçom das metrópoles capitalistas, nom tem porvir.

De 1959 a 1967, o pensamento do Che evoluiu muito. Afastou-se cada vez mais das ilusons iniciais a respeito do socialismo soviético e do marxismo de tipo soviético, quer dizer, do estalinismo. Numha carta de 1965 a um amigo cubano, criticava duramente o “seguidismo ideológico” que estava a manifestar-se em Cuba com a ediçom de manuais soviéticos para o ensino do marxismo –um ponto de vista coincidente com o defendido, nessa mesma época, por Fernando Martínez, Aurelio Alonso e os seus amigos do Departamento de Filosofia da Universidade de Havana e da revista Pensamiento crítico. Estes manuais –que nomeia como “os calhamaços soviéticos”– “tenhem o inconveniente de nom te deixarem pensar: o Partido já fai isso por ti e tu tés de o digerir”. Percebe-se, de modo cada vez mais explícito, mormente nos seus escritos a partir do debate económico de 1963, o rejeitamento crescente do “decalque e cópia” –estou a pensar aqui na célebre fórmula de Mariátegui: o socialismo indo-americano nom será decalque e cópia doutras experiências, aliás criaçom heróica– e a procura de um modelo alternativo.

Nom é, pois, por acaso que a posiçom, no que di respeito à questom do socialismo “realmente existente” tomou, depois de 1965, a forma de umha crítica radical de um manual soviético.

Trata-se das notas críticas ao Manual de Economia Política da URSS (ediçom em espanhol de 1963) que Che Guevara redigiu, na sua estadia na Tanzánia e em Praga, em 1965-66, após o fracasso da sua missom no Congo e antes de partir para a Bolívia. Há muito tempo, muitíssimo tempo que era esperada a publicaçom desta obra… Durante dezenas de anos, este documento ficou “fora de circulaçom”; logo a seguir à queda da URSS foi permitido consultá-lo a alguns investigadores cubanos, e extrair alguns curtos fragmentos para os seus trabalhos. E é agora, quarenta anos depois da sua redacçom, que se decidiu publicá-lo em Cuba, numha ediçom aumentada que contém outros materiais inéditos: umha carta do Che a Fidel Castro, de Abril de 1965, que serve de Prólogo ao livro, notas sobre escritos de Karl Marx e de Lenine, umha selecçom de conversaçons entre Guevara e os seus colaboradores do Ministério da Indústria (1963-65) –já parcialmente publicadas em França e em Itália nos anos 70–, cartas a diversas personalidades (Paul Sweezy, Charles Bettelheim), e extractos de umha entrevista com o jornal egípcio El-Taliah (Abril de 1965).

Porque as notas de Guevara nom se publicárom mais cedo? Pode, no limite, compreender-se que, antes do fim da URSS, existissem razons “diplomáticas” para ocultar a verdade. Mais, depois de 1991? O prefácio do livro, de Maria del Carmem Ariet, do Centro de Estudos Che Guevara de Havana, nom explica nada, e limita-se a observar que “este texto foi durante anos um dos mais esperados” do Che.

Por fim, este material está agora à disposiçom dos leitores interessados, e é, com efeito, apaixonante. Testemunha à vez a independência de espírito de Guevara, a sua tomada de distáncia crítica em face do modelo de “socialismo realmente existente”, e a sua procura de umha alternativa radical. Mas mostra em simultáneo os limites da sua reflexom.

Principiemos por eles: o Che, neste momento –nom se sabe se o seu pensamento neste tema avançou em 1966-67– nom compreendeu a questom do estalinismo. Atribui os becos sem saída da URSS dos anos sessenta a… a NEP de Lenine! Certamente, ele pensa que, se Lenine tivesse vivido mais tempo –ele cometeu o erro de morrer, anota com ironia– teria corrigido os efeitos mais retrógados dessa política. Mas está convencido de que a introduçom de elementos capitalistas pola NEP conduziu para nefastas tendências que observa na URSS em 1963, ao caminhar no senso de umha restauraçom do capitalismo. Todas as críticas de Guevara à NEP nom som sem interesse e, por vezes, coincidem com as da oposiçom de esquerda em 1925-27; por exemplo, quando está a constatar que no curso dos anos 20, “os quadros aliárom-se ao sistema ao constituirem umha casta privilegiada”. Pergunta a si próprio se nom leu Trotsky –que definia a burocracia como umha “casta”–, mais ele nom o menciona em parte algumha nestas notas… Em todo o caso, a hipótese histórica que fai da NEP responsável polas tendências pró-capitalistas na URSS de Brejnev é, às claras, pouco operativa. Excepto um ou dous comentários, as notas ignoram por completo, de um modo simples, o estalinismo e as monstruosas deformaçons que introduziu no sistema económico, social e político da URSS.

Este documento –com outros materiais publicadosnesta compilaçom de 2006– ao ser ainda pouco conhecido, vamos conceder-lhe um lugar central na nossa discussom da sua concepçom do socialismo.

O socialismo para o Che era o projecto histórico de umha nova sociedade, fundada sobre os valores da igualdade, a solidariedade, o colectivismo, o altruísmo revolucionário, o internacionalismo, o livre debate e participaçom popular. Assim como as suas críticas, crescentes, ao modelo soviético pola sua prática como dirigente e a sua reflexom sobre a experiência cubana inspiradas nesta utopia –no senso que dá Ernst Bloch a esta palavra, umha “paisagem-de-desejo”– comunista.

Quatro aspectos traduzem concretamente a ética revolucionária de Ernesto Guevara e a sua procura de um novo caminho: o internacionalismo; umha concepçom da construçom do socialismo que opom a solidariedade ao indiviualismo mercantil; a questom da livre expressom dos desacordos, e a perspectiva da democracia socialista. Som os dous primeiros que ocupam o lugar principal das suas reflexons: os outros dous –estreitamente ligados– estám muito menos desenvolvidos, com lacunas e contradiçons. Mas estám, contodo, presentes nas suas preocupaçons e na sua prática política. Nom se encontra, nos seus escritos, um pensamento acabado, sistemático, sobre estas questons: muitas pistas, aberturas, janelas que dam para “um outro mundo possível”.

1 O internacionalismo socialista

Há umha frase de José Marti que Guevara gostava de citar nos seus discursos e em que via “a bandeira da dignidade”: “Todo ser humano verdadeiro deve sentir sobre a sua face a pancada dada a nom importa que outro ser humano”. A traduçom política desta dignidade é o internacionalismo. Já agora, o internacionalismo é umha necesidade, um imperativo estratégico no combate contra o imperialismo –é o tema central da sua Carta à Tricontinental (1966)–, mas é, também, umha alta exgigência moral: internacionalista é quem for capaz de “experimentar a angústia quando um homem é assassinado em qualquer parte do mundo e celebrar quando se ergue em qualquer parte umha nova bandeira da liberdade”; o que sente “como umha afronta pessoal toda agressom, toda afronta à dignidade e à felicidade do homem, nom importa em que parte do mundo”.

No seu célebre “Discurso de Argel” (Fevereiro de 1965), Che Guevara exigia dos países que se reclamavam do socialismo “liquidar a sua complicidade tácita com os países exploradores de Ocidente”, que estava a traduzir-se em relaçons de intercámbio desigual com os povos em luita contra o imperialismo. Este assunto volta muitas vezes nas Notas Críticas sobre o Manual Soviético. Enquanto os autores desta obra oficial gabam “a ajuda mútua” entre países socialistas, o antigo Ministro da Indústria cubano está obrigado a constatar que esta nom está a corresponder-se com a realidade: “A presidir o internacionalismo proletário os actos dos governos de cada país socialista (…) isto seria um êxito. Mas o internacionalismo foi substituído polo chauvinismo (de grande potência ou de pequeno país) ou osubmetimento à URSS (…). Isto fere (atenta contra) todos os sonhos honestos dos comunistas do mundo”. Algumhas páginas mais adiante, num comentário irónico a umha afirmaçom do Manual a respeito da divisom do trabalho entre países socialistas, fundada sobre umha “fraternal colaboraçom”, Guevara observa: “A gaiola de grilos (olla de grillos) que é o CAME desmente tal asseveraçom na prática. O texto está a referir-se a um ideal que poderia estabelecer-se somente com umha verdadeira prática do internacionalismo proletário, mas está lamentavelmente ausente hoje”. No mesmo senso, noutro fragmento constata, com amargura, que nas relaçons entre países que se reclamam do socialismo se encontram “fenómenos de expansionismo, de intercámbio desigual, de concorrência, mesmo um certo ponto de exploraçom e certamente de submetimento dos Estados fracos aos fortes”. Numha palavra, quando o Manual fala da necessidade do Estado para “a construçom do comunismo”, a crítica coloca esta questom retórica: “pode construir-se o socialismo num só país?”. Mesmo se Trotsky em modo nengum é mencionado nestas Notas, nom se pode outra cousa que certificar a analogia entre esta advertência e as posiçons da oposiçom comunista de esquerda de 1927… Outra nota interessante vai no mesmo senso: Lenine, observa o Che, “afirmou com claridade o carácter universal da revoluçom, cousa que de seguida foi negada” –umha referência transparente ao “socialismo num só país”, mas, mais umha vez, nom é questom de estalinismo.

2. Por um socialismo da fraternidade

A solidariedade é um vector político e moral tanto para as relaçons entre povos como entre indivíduos: trata-se de momentos dialecticamente inseparáveis. No mesmo discurso de Argel, Guevara insistia: “nom pode existir o socialismo se nom operar nas consciências umha mudança que conduza para umha nova atitude fraternal com a humanidade, tanto a nível do indivíduo, na sociedade em que se constrói ou que constrói o socialismo, como a nível mundial, em relaçom com os povos que estám a sofrer a opressom imperialista”.

O socialismo nom é unicamente umha mudança económica, mas também umha profunda revoluçom moral e cultural –que Guevara designa com o conceito de “homem novo”– em ruptura com o utilitarismo egoísta e mercantil da civilizaçom do capital. Ao analisar no seu ensaio de Março de 1965, O socialismo e o homem em Cuba, os modelos de construçom do socialismo dominantes na Europa oriental, rejeitava a concepçom que pretendia “vencer o capitalismo com os seus próprios feitiços”: “Ao perseguir a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas poluídas que nos legou o capitalismo –a mercadoria tomada como célula económica, o rendimento, o interesse material individual como alavanca, etc, pode desembocar-se numha via sem saída. Para construir o comunismo, é preciso, ao mesmo tempo que a base material, criar o homem novo”.

Este “homem novo”, portador de umha consciência revolucionária, nom pode desenvolver-se se nom for a partir de valores como a solidariedade e a igualdade. Um documento apaixonante sobre a evoluçom das ideias do Che Guevara som as actas das discussons periódicas que mantinha com os seus colaboradores do Ministério da Indústria. Longos extractos destas actas figuram no mesmo volume, publicado em 2006 em Havana, que as notas críticas sobre o Manual soviético. Despois de umha discussom em Dezembro de 1963, o camarada ministro observava: “O comunismo é um fenómeno de consciência e nom somente um fenómeno de produçom; nom se pode chegar ao comunismo pola simples acumulaçom mecánica de quantidades de produtos postos a disposiçom do povo. Nom se pode chegar ao que Marx definia como comunismo (…) se nom existir um ser humano consciente”.

Num debate de Dezembro de 1964, o Che volta sobre a questom da ausência de igualdade verdadeira no “socialismo real”. Um dos principais perigos do modelo importado dos países do Leste europeu era o aumento da desigualdade social e a formaçom de umha minoria privilegiada de tecnocratas e burocratas: neste sistema de distribuiçom “som os directores os que ganham cada vez mais. Basta ver o último projecto da RDA, a releváncia que assume a gestom do director, ou melhor, a retribuiçom da gestom do director”. Esta questom preocupa-o até o mais alto grau, a tal ponto que a menciona de novo numha carta a Fidel Castro de Abril de 1965 (um pouco antes da sua partida de Cuba) –também publicada, pola primeira vez, na colectánea de 2006– onde ele fai referência ao “interesse material dos dirigentes, princípio da corrupçom”.

O fundo do debate, em 1963-66, à vez com os partidários da “lei do valor no socialismo” -um dogma de Estaline defendido no debate económico cubano por Charles Bettelheim, e contestado por Ernest Mandel– e mais tarde, com as afirmaçons do Manual soviético, era um confronto entre umha visom economicista –a esfera económica como sistema autónomo, regida polas suas próprias leis, como a lei do valor ou as leis do mercado– e umha concepçom política e moral do socialismo, isto é, a tomada de decisons económicas –as prioridades produtivas, os preços, etc. –segundo critérios sociais, éticos e políticos. As proposiçons económicas de Guevara –a planificaçom contra o mercado, o sistema orçamental de financiamento, os estímulos colectivos ou “morais”– tinham como objectivo um modelo de construçom do socialismo fundado nestes critérios e diferente, portanto, do soviético.

3. A liberdade de discussom

A liberdade como valor ético é, para Ernesto Guevara, primeiro que toda a libertaçom em relaçom à dominaçom do capital e a alienaçom mercantil; segundo as Notas críticas ao Manual, trata-se de “libertar o ser humano da sua condiçom de cousa económica”.O que se passa com a liberdade de expressom das divergências? Um aspecto político importante do debate económico dos anos 1963-64, que merece ser alegado, é o facto mesmo da discussom. Quer dizer, o reconhecimento de que a expressom pública dos desacordos é normal num processo de construçom do socialismo. Noutros termos, a legitimaçom de um certo pluralismo democrático na revoluçom. Esta problemática está apenas implícita no debate económico. Guevara nom a desenvolveu de forma explícita ou sistemática. Mas a sua atitude, com diversas retomadas no curso da década de 60, mostra que era favorável ao livre debate, e ao respeito da pluralidade de opinions. A modo de exemplo, numha das discusons com os seus colaboradores (Dezembro de 1964) dirige-se ao seu principal adversário no debate económico cubano, o comandante Alberto Mora : “Faltam ao trabalho de Alberto duas cousas. Ou que nos demonstre que nous avons tort (que estávamos enganados) –o que em modo algum pode ser mau– ou entom que demonstre a si próprio que nom tem razom, o que nom pode ser tampouco mau. Tanto num caso como no outro (Cualquiera de las dos cosas) vai enriquecer-se qualquer cousa que é bastante pobre e que precisa de um trabalho suplementar”.

Outro exemplo interessante é o seu comportamento a respeito dos trotskistas cubanos, com quem nom partilhava de nengum modo as análises (criticou-nos com dureza em diversas ocasions). Em 1961, numha entrevista com um intelectual da esquerda norte-americana Maurice Zeitlin, Guevara denunciou a destruiçom, pola polícia cubana, das placas de impressom de A Revoluçom Permanente de Trotsky, como um “erro” que “nom deveria ter lugar” e alguns anos mais tarde, pouco antes de abandonar Cuba em 1965, ele conseguiu tirar da cadeia o dirigente trotskista cubano Roberto Acosta Hechevarria, a quem manifesta, antes de o deixar com um abraço fraternal: “Acosta, as ideias nom se matam a golpe de matraca”.

Nom obstante, a sua reflexom mais importante neste terreno é a sua resposta –no debate de Dezembro de 1964 com os seus camaradas do Ministério da Indústria já mencionada– a crítica de certos soviéticos, que o acusavam de defender ideias “trotskistas”. “Neste tema, penso que, ou bem temos a capacidade de destruir com argumentos a opiniom contrária, ou bem debemos deixar que se expresse. Nom é possível destruir umha opiniom à força, pois esta bloqueia por completo o livre desenvolvimento da inteligência. Assim, no pensamento de Trotsky podem assumir-se umha série de cousas, mesmo se, como eu penso, está equivocado nas suas concepçons, e a sua acçom posterior foi equivocada” Guevara ajusta ironicamente que os soviéticos o tratárom de “trotskista”, ao aplicar-lhe esta etiqueta como um “Sam Benito”–isto é, o hábito com que a Inquisiçom em Espanha cobria os hereges no momento de os conduzir à fogueira…

Talvez nom seja um acaso que a defesa mais explícita da liberdade de expressom e a crítica mais directa de Guevara ao autoritarismo estaliniano venha de manifestar-se no terreno da arte. No seu célebre ensaio O Socialismo e o Homem em Cuba (1965) denuncia o “realismo socialista” de feitio soviético como imposiçom de umha forma de arte –a que “entendem os funcionários”. Com este método, sublinhava, “está a suprimir-se a autêntica procura artística” e está a impor-se “umha verdadeira camisa de força à expressom artística”.

4. A democracia socialista

A democracia, ou o anti-autoritarismo, era também um valor ético importante para Che Guevara. Já agora, nunca elaborou umha reflexom teórica sustentada a respeito do papel da democracia na transiçom ao socialismo –talvez a maior lacuna da sua obra–, mas rejeitava as concepçons autoritárias e ditatoriais que prejudicárom a tal ponto o socialismo do século XX. Aos que pretendiam, por cima, “educar o povo” –falsa doutrina já criticada por Marx nas suas Teses sobre Feuerbach de 1845 (“quem vai educar os educadores?”), respondia, num discurso de 1960: “A primeira receita para educar o povo (…) é a de o fazer entrar na revoluçom. Nunca convém tentar educar um povo para que, unicamente por meio da educaçom, e um governo despótico por cima, aprenda a conquistar os seus direitos. Ensinade-lhe, antes de mais, a conquistar os seus direitos, e este povo, umha vez representado no governo, aprenderá todo quanto lhe for ensinado, e muito mais: ele será o mestre de todos, sem esforço nengum”. Por outras palavras: a única pedagogia emancipadora é a auto-educaçom dos povos pola própria prática revolucionária –ou, como escrevia Marx em A Ideologia Alemá (1846), “na actividade revolucionária, a mudança de um mesmo coincide com a transformaçom das condiçons”. As notas críticas redigidas em 1966 sobre o Manual de Economia Política soviético vam no mesmo senso: “O terrível crime histórico de Estaline “foi” o de ter desprezado a educaçom comunista e instituído um culto ilimitado da autoridade”. Mágoa que nom desenvolvesse esta ideia …

Guevara rejeita a democracia burguesa, mas –apesar da sua sensibilidade antiburocrática e igualitária– está longe de ter umha visom clara das relaçons entre socialismo e democracia. Em O Socialismo e o Homem em Cuba, reconhece que o Estado revolucionário pode equivocar-se e provocar assim umha reacçom negativa das massas populares, o que o obriga a rectificar –o exemplo que refere é a política sectária do Partido sob a direcçom do quadro estaliniano Aníbal Escalante em 1961-62. Contodo, aponta que “é evidente que este mecanismo nom basta para assegurar umha sucessom de medidas razoáveis: falta umha ligaçom mais estruturada com as massas”. Num primeiro momento, parece encontrar umha soluçom numha vaga “interrelaçom dialéctica” entre os dirigentes e as massas. Nom obstante, umhas páginas mais à frente, avisa de que o problema está longe de ter achado umha soluçom ajeitada, que permita um controlo democrático efectivo: “Esta institucionalidade da Revoluçom ainda nom tivo êxito. Nos estamos a procurar algo novo (…).

No curso do debate económico de 1963-65, a sua principal limitaçom neste terreno era a insuficiência da sua reflexom sobre a relaçom entre democracia e planeamento. Os seus argumentos em defensa da planificaçom e em contra das categorias mercantis som muito importantes e cobram nova actualidade frente à vulgata neoliberal que domina hoje com a sua “religiom do mercado”. Mas deixam na sombra umha questom política chave: quem decide as grandes opçons do plano económico? Quem determina as prioridades da produçom e do consumo? Sem umha verdadeira democracia –isto é: a) pluralismo político; b) livre discussom de prioridades e c) livre eleiçom para a populaçom entre as diversas proposiçons e plataformas económicas propostas –a planificaçom transforma-se inevitavelmente num sistema burocrático, autoritário e ineficaz de “ditadura sobre as necessidades”, como o mostra sobejamente a história da ex-URSS. Por outras palavras: os problemas económicos da transiçom ao socialismo som inseparáveis da natureza do sistema político. A experiência cubana dos últimos trinta anos revela, ela também, as conseqüências negativas da ausência de instituçons democráticas/socialistas –mesmo se Cuba tivo êxito ao evitar as aberraçons burocráticas e totalitárias de outros Estados do assim nomeado “socialismo real”.

Quem deve planificar? O debate de 1963-64 nom respondeu a esta questom. É neste tema que se encontram os avanços de mais interesse nas notas de 1965-66. Ao criticar umha vez mais o modelo soviético escreve: “Em contradiçom com umha concepçom do plano como decisom económica de massas conscientes dos interesses populares, oferece-se um placebo, em que só os elementos económicos decidem sobre o destino colectivo. É um procedimento mecanicista, anti-marxista. As massas devem ter a possibilidade de dirigirem o seu destino, de decidirem qual é a parte da produçom que irá à acumulaçom e qual será consumida. A técnica económica tem de operar nos limites destas indicaçons e a consciência das massas deve assegurar a sua aplicaçom”. Este tema é retomado em diversas ocasións: os obreiros, escreve, o povo em geral, “decidirám sobre os grandes problemas do país (taxas de crescimento, acumulaçom/consumo), mesmo se o plano é obra de especialistas”. (25) Pode criticar-se esta separaçom em excesso mecánica entre as decisons económicas e a sua execuçom, mas por estas formulaçons Guevara está a aproximar-se consideravelmente da ideia de planificaçom socialista democrática, tal como, por exemplo, a formulava Ernest Mandel. Nom extrai todas as conclusons políticas –democratizaçom do poder, pluralismo político, liberdade de organizaçom–, mas nom se pode negar a releváncia desta visom nova da democracia económica.

Podem-se considerar estas notas como umha etapa importante no caminho do Che Guevara de cara a umha alternativa comunista/democrática face ao modelo (estalinista) soviético. Um caminho brutalmente interrompido polos assassinos bolivianos ao serviço da CIA em Outubro de 1967.

Michael Löwy é teórico marxista, especialista na questom nacional e no Che Guevara, e militante da LCR francesa.



Retirado do Primeira Linha



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