Páginas

23 de janeiro de 2008

As Farc em sua luta histórica de resistência contra o capital


Li Esse texto no Brasil de Fato e resolvi postar aqui...



As Farc em sua luta histórica de resistência contra o capital

por: Roberta Traspadini

O século XXI traz para a classe trabalhadora da América Latina o desafio de construção e implementação do socialismo no continente, protagonizado pelos nossos povos, a partir da particularidade da luta de classes em cada um de seus países. Primeiro, porque as históricas contradições do processo de desenvolvimento capitalista têm gerado uma crise insustentável na preservação do modo de vida desse continente. Pelos dados da Cepal e OIT (Organização Internacional do Trabalho), dos 520 milhões de habitantes do continente, 209 milhões se encontram em situação de pobreza e indigência. Além disso, dos 106 milhões de jovens, 10 milhões estão desempregados, 30 milhões estão na economia informal e 22 milhões não estudam nem trabalham.

Segundo, porque as históricas lutas de resistência latino-americanas geram, em seu movimento, uma renovada forma do conteúdo da luta de classe, que questiona o poder eleitoral-partidário atual, como único contra-poder operante frente ao modo de produção capitalista, e sustenta a consolidação de um novo projeto popular para os latinos. Isso ocorre em um contexto de reestruturação dos sujeitos e seus instrumentos de luta em Nossa América. Um renovado que-fazer político legitimado e referendado pelo poder popular nos territórios, a partir de suas identidades e com um projeto comum de classe para nossos povos que não só tome o Estado, mas tenha base e força suficiente para transitar rumo ao seu fim – o comunismo.

Sobre o mundo do trabalho, pesam ainda as novas facetas políticas dos Estados hegemônicos na América Latina, utilizando vários recursos de poder para minimizar, no limite seu custo de produção, tanto no que diz respeito aos históricos direitos trabalhistas, quanto no que diz respeito à reprodução da célula capitalista na vida familiar (mulheres, homens, crianças, todos trabalhando para garantir a sobrevivência mínima).

Jornadas de trabalho excessivas, horas extras desregulamentadas, salários abaixo do nível da própria subsistência, acordos comerciais contratuais que não especificam nem o sentido, nem as garantias laborais. Nos últimos anos, a superexploração, como mecanismo particular de obtenção de lucro no continente, atinge o seu esplendor como modo de reprodução da vida nesse sistema capitalista depredador.

Território livre ou dependência?

É nesse marco, das atuais contradições do capital na sua dinâmica exploradora, e contra o trabalho, que temos que entender a atual venda de imagens e idéias da situação da Colômbia pelos Estados Unidos, a partir da atuação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A Colômbia vive ao longo dos últimos 40 anos uma guerra civil aberta entre os que defendem um território livre – a guerrilha conhecida como Farc e outros movimentos – e os que defendem o desenvolvimento dependente como único modelo possível. A contradição emana daí. Em meio a esse cenário, o país se tornou território de produção capitalista do narcotráfico mundial, negócio cujas principais lideranças ou são associadas ao grande capital, ou são geradas por ele mesmo - produção, distribuição e consumo.

Mas se o narcotráfico é o carro-chefe da projeção dependente e subordinada do modo de produção colombiano para e com o capital, é também um dos centros de projeção do poder no País, como um motor econômico. E como todo centro, é espaço de disputa do poder hegemônico mundial no território. Logo, associar o narcotráfico diretamente à guerrilha, sem mencionar seus processos de apropriação e acumulação privada dos atores hegemônicos no continente, é contar a história a partir do ocultamento real de suas relações sociais de produção.

"Redes terroristas"

É dessa dinâmica do capital protagonizador do tráfico internacional, concentrado na Colômbia, que, desde os golpes militares na América Latina na década de 60, os governos estadunidenses e seus líderes vêm listando uma rede de organizações terroristas e sujeitos perigosos intelectual e politicamente, ameaçadores de seu poder. Isso se dá em todas as partes do nosso continente, com aliança de grandes empresários nacionais com empresários internacionais do crime, cujas sedes de acumulação estão nos países centrais como parte de projeção do poder que emana do Estado burguês. É a partir daí que temos que entender o histórico conflito gerado pelo Estado estadunidense e seu braço armado via Estado burguês colombiano, contra as Farc.

Numa guerra civil, todos os lados cometem abusos. E não é a guerrilha quem aniquila os direitos. É o próprio capital em seu desenvolvimento no continente que gera, ao longo de seu processo, uma situação de pobreza, miséria, perdas no campo, na consolidação de um modelo de produção e reprodução ampliada ditado de fora para dentro. Os movimentos, incluída a guerrilha, surgem nos nossos países porque reivindicam os direitos e deveres básicos constitucionais, reiterados nas cartilhas do Estado de direito moderno. Outro paradoxo: reivindicam direitos quando o Estado necessita deles para gerar sua acumulação lucrativa.

A leitura dos excessos tem que valer para os dois lados. A guerrilha na sua essência, no seu conteúdo, nasce e se desenvolve como um instrumento de classe, para a classe, para os que acreditamos num projeto socialista para nossos povos e continente. E a guerrilha não é o único instrumento de classe. Por isso, a análise de seus meios e fins só pode ser feita a partir da histórica explicitação dos conflitos internos próprios e exteriores, vividos por vários sujeitos neste território.

Nascida para fazer valer a reforma agrária popular no País em 1964, e para consolidar o poder, na tomada do Estado, de um grupo socialista-comunista, este movimento, Farc, teve e tem influências dos principais instrumentos políticos que nos legitimam e integram como esquerda internacional: revolução mexicana, revolução russa, revolução cubana, vitória de Salvador Allende e lutas de resistência e libertação de Nuestra América.

Mas seu tempo não pode ser o de perpetuação longa como instrumento que disputa com o capital, nas mesmas perigosas regras de violência geradas por ele, sem alcançar outros patamares de consolidação do poder popular, tanto de tomada do Estado, quanto de permanência nele como Estado de transição socialista. Porque ao se prolongar, a guerrilha como instrumento político de luta no território gera, mesmo no interior da classe – consciente na e pela luta, ou conscientizada pelas suas carências –, uma instabilidade e um medo que pode colocá-la, como instrumento, em risco. E gera, ao mesmo tempo, os elementos centrais que o capital, da grande mídia capitalista, utiliza a seu favor e contra nossas lutas, dada sua dominação nos três grandes aparelhos do poder: militar, econômico e político-ideológico.

Perpetuação do poder

Nossa herança histórica latino-americana, a partir da dominação do invasor no continente, nos mostra que tanto o saque, quanto as violações e sequestros, são uma lembrança viva daquilo que o capital nos ensina sobre sua violenta forma de execução e perpetuação do poder ao longo de 500 anos de luta no continente. Sem falar nos vários presos políticos, mortos políticos, e sujeitos latino-americanos que são assassinados ou violados em seus direitos diariamente por esses inescrupolosos defensores da paz em seus projetos de guerra pelo lucro.

Por isso, quando Hugo Chávez defende a retirada das FARC como grupo terrorista dos documentos e posicionamentos internacionais, reitera que nos movimentos de luta da classe trabalhadora ao menos os julgamentos de valores necessitariam de uma defesa de classe na projeção de quem é e como age o inimigo. Nesse caso, para nós, classe trabalhadora, o inimigo continua sendo histórico: a burguesia internacional que atua em nossos territórios, aliada ao grande capital nacional. Logo, os seqüestros não são arma criada pela guerrilha Farc contra o capital. Os seqüestros são a forma que, no extremo do conflito da luta de classes, a guerrilha utiliza para negociar com a outra parte, o poder burguês hegemônico e seus pares nacionais, a retomada de sujeitos, territórios, projetos e processos antes seus. É um modo do fazer político, como vários outros, gerado na essência mesma de consolidação do poder do capital contra o trabalho.

Queremos sim, uma América Livre do narcotráfico, livre dos seqüestros, livre das violações, livre da exploração, livre da opressão, livre de toda forma de dominação. Mas para executarmos e realizarmos uma América Livre é necessário seguirmos lutando contra nosso inimigo histórico e real: o capital em suas várias facetas violentas e violadoras dos direitos. Direitos estes que para serem humanos necessitam ser executados em uma nova ordem política-econômica-social-ideológica, por sujeitos que na sua relação com a natureza e com os demais seres, reiterem a práxis socialista.

Assim como as Farc, muitos movimentos sociais na América Latina e no mundo vivem no limite de sua ação contra o capital. E ainda que a maioria da população do nosso continente viva no limite da sobrevivência, são aqueles que vivem no extremo da luta de classes, abrindo o fosso e explicitando as mazelas de seu inimigo histórico, os que pagam o preço, na mídia conservadora, de violarem a ordem e o progresso do poder estabelecido. São milhares de sem-terra, sem-teto, sem-trabalho e com trabalho superexplorado (in)formal que, através de seus instrumentos políticos de luta, questionam e abalam a ordem burguesa. Logo, sofrem a opressão, repressão e o terror dos aparelhos violentos, materiais e ideológicos do Estado burguês contra suas lutas.

Ao combater essa lógica de poder capitalista, os sujeitos latino-americanos em movimento reafirmam para nós, classe trabalhadora, que suas lutas são legítimas e legais. Porque a ilegalidade é uma leitura de classe. É um ponto de vista particular sobre o crime desde uma lógica operada de poder. O Estado de direito no continente vive, em quase todas as partes, a projeção dos interesses da classe dominante burguesa. E é óbvio que, em uma leitura projetada desde os mecanismos da farsa dos hegemônicos estadunidenses e seus aliados latinos-mundiais, todos aqueles que lutam pela soberania, pelas identidades, pelo direito a ser próprio, e, principalmente, pelo socialismo como projeto de vida real para nossos povos, serão vistos como criminosos, violentos e terroristas.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular e integrante da Consulta Popular


http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/as-farc-em-sua-luta-historica-de-resistencia-contra-o-capital



Fiquem na paz