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20 de setembro de 2011


Marx pode ter errado sobre o comunismo, mas estava certo sobre o capitalismo, diz Gray
Como efeito colateral da crise financeira, mais e mais pessoas estão começando a pensar que Karl Marx estava certo. O grande filósofo, economista e revolucionário alemão do século 19 acreditava que o capitalismo era radicalmente instável.
Ele tem uma tendência intrínseca de produzir avanços e fracassos cada vez maiores, e no longo prazo, ele estava destinado a se autodestruir.
Marx saudava a autodestruição do capitalismo. Ele era confiante que uma revolução popular ocorreria e daria origem um sistema comunista que seria mais produtivo e muito mais humano.
Marx estava errado sobre o comunismo. Aquilo sobre o que ele estava profeticamente certo era a sua compreensão da revolução do capitalismo. Não era somente a instabilidade endêmica do capitalismo que ele compreendia, embora neste sentido ele fosse muito mais perspicaz do que a maioria dos economistas da sua época e da nossa.
Mais profundamente, Marx compreendeu como o capitalismo destrói a sua própria base social - o meio de vida da classe média. A terminologia marxista de burguês e proletário tem um tom arcaico.
Mas quando ele argumentava que o capitalismo iria arrastar as classes médias a algo parecido com a existência precária dos sobrecarregados trabalhadores de sua época, Marx previu uma mudança na maneira como vivemos à qual só agora estamos lutando para nos adaptarmos.
Karl Marx
Marx escreveu o Manifesto Comunista com Friedrich Engels
Ele via o capitalismo como o sistema econômico mais revolucionário da história, e não pode haver dúvida de que ele se diferencia daqueles que vieram antes dele.
Os caçadores e coletores persistiram nesta forma de vida por milhares de anos, enquanto as culturas escravagistas permaneceram assim por quase o mesmo tempo, e as sociedades feudais sobreviveram por muitos séculos. Em contraste, o capitalismo transforma tudo que ele toca.
Não são só as marcas que estão mudando constantemente. As empresas e as indústrias são criadas e destruídas em um fluxo incessante de inovação, enquanto as relações humanas são dissolvidas e reinventadas em novas formas.
O capitalismo foi descrito como um processo de destruição criativa, e ninguém pode negar que ele foi prodigiosamente produtivo. Praticamente qualquer um que esteja vivo na Grã-Bretanha hoje tem uma renda real maior do que eles teriam se o capitalismo nunca tivesse existido.
Retorno negativo
O problema é que entre as coisas que foram destruídas no processo está o estilo de vida do qual o capitalismo dependia no passado.
Defensores do capitalismo argumentam que ele oferece a todos os benefícios que, na época de Marx, eram desfrutados somente pela burguesia, a classe média estabelecida que possuía capital e tinha um razoável nível de segurança e liberdade em suas vidas.
No capitalismo do século 19, a maioria das pessoas não tinha nada. Elas viviam de vender o seu trabalho, e quando os mercados entravam em queda, eles enfrentavam tempos difíceis. Mas à medida que o capitalismo evolui, seus defensores dizem, um número crescente de pessoas pode se beneficiar dele.
Foto: AFP
Os mercados apresentam muita volatilidade
Carreiras bem-sucedidas não serão mais a prerrogativa de uns poucos. As pessoas não terão dificuldades todo mês para subsistir com base em um salário inseguro. Protegidos pelas economias, pela casa que possume e uma pensão decente, eles serão capazes de planejar suas vidas sem medo.
Com o crescimento da democracia e a distribuição da riqueza, ninguém precisará ser privado da vida burguesa. Todo mundo poderá ser da classe média.
Na verdade, na Grã-Bretanha, nos EUA e em muitos outros países desenvolvidos nos últimos 20 ou 30 anos, o contrário vem ocorrendo. A segurança do emprego não existe, as atividades e as profissões do passado em grande parte acabaram e as carreiras que duram uma vida inteira são meramente lembranças.
Se as pessoas têm qualquer riqueza, isto está nas suas casas, mas os preços dos imóveis nem sempre crescem. Quando o crédito fica restrito como agora, eles podem ficar estagnados por anos. Uma minoria cada vez menor pode contar com uma pensão com a qual pode viver confortavelmente, e não são muitos os que tem economias significativas.
Mais e mais pessoas vivem um dia de cada vez, com pouca noção do que o futuro pode reservar. AS pessoas da classe média costumavam imaginar as suas vidas desdobradas em uma progressão ordenada. Mas não é mais possível olhar para uma vida como uma sucessão de estágios em que cada um é um passo dado a partir do último.
No processo da destruição criativa, a escada foi afastada, e para um número cada vez maior de pessoas, uma existência de classe média não é mais sequer uma aspiração.
Assumindo riscos
Enquanto o capitalismo avançava, ele devolveu as pessoas a uma nova versão da existência precária do proletariado de Marx. As nossas rendas são muito maiores, e em algum grau nós estamos protegidos contra os choques por aquilo que resta do Estado de bem-estar social do pós-guerra.
Mas nós temos muito pouco controle efetivo sobre o curso das nossas vidas, e a incerteza na qual vivemos está sendo piorada pelas políticas voltadas para lidar com a crise financeira.
As taxas de juros a zero em meio a preços crescentes querem dizer que as pessoas estão tendo um retorno negativo de seu dinheiro, e ao longo do tempo o seu capital está se erodindo.
"Hoje, não existe o porto seguro. As rotações do mercado são tais que ninguém pode saber o que terá valor dentro de alguns anos."
John Gray, filósofo político
A situação de muitas das pessoas mais jovens é ainda pior. Para adquirir os talentos de que precisa, a pessoa tem de se endividar. Já que em algum ponto será necessário se reciclar, é preciso tentar economizar, mas se a pessoa está endividada desde o começo, esta é a última coisa que ela poderá fazer.
Não importa a sua idade, a perspectiva que a maioria das pessoas enfrenta é de uma vida de insegurança.
Ao mesmo tempo em que privou as pessoas da segurança da vida burguesa, o capitalismo criou o tipo de pessoa que vive a obsoleta vida burguesa. Nos anos 80, havia muita conversa sobre valores vitorianos, e propagandistas do livre mercado costumavam argumentar que ele traria de volta para nós os íntegros valores de outrora.
Para muitos, as mulheres e os pobres, por exemplo, estes valores vitorianos podem ser bastante ilógicos em seus efeitos. Mas o fato mais importante é que o livre mercado funciona para corroer as virtudes que mantêm a vida burguesa.
Quando as economias estão se perdendo, ser econômico pode ser o caminho para a ruína. É a pessoa que toma pesados empréstimos e não tem medo de declarar a insolvência que sobrevive e consegue prosperar.
Quando o mercado de trabalho está altamente volátil, não são aqueles que se mantém obedientemente fiéis a sua tarefa que são bem-sucedidos, e sim as pessoas que estão sempre prontas para tentar algo novo e que parece mais promissor.
Em uma sociedade que está sendo continuamente transformada pelas forças do mercado, os valores tradicionais são disfuncionais, e qualquer um que tentar viver com base neles está arriscado a acabar no ferro-velho.
Vasta riqueza
Olhando para um futuro no qual o mercado permeia cada canto da vida, Marx escreveu no 'Manifesto Comunista': "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Para alguém que vivia na Grã-Bretanha no início do período vitoriano - o Manifesto foi publicado em 1848 -, isto era uma observação incrivelmente perspicaz.
Naquela época, nada parecia mais sólido que a sociedade às margens daquela em que Marx vivia. Um século e meio depois, nos encontramos no mundo que ele previu, onde a vida de todo mundo é experimental e provisória, e a ruína súbita pode ocorrer a qualquer momento.
Foto: AFP
Medidas de austeridade para reduzir dívida grega acabaram em revoltas
Uns poucos acumularam uma vasta riqueza, mas mesmo isso tem uma característica evanescente, quase espectral. Na época vitoriana, os muito ricos podiam relaxar, desde que eles fossem conservadores com a maneira como eles investiam seu dinheiro. Quando os heróis dos romances de Dickens finalmente recebem sua herança, eles nunca mais fazem nada na vida.
Hoje, não existe o porto seguro. As rotações do mercado são tais que ninguém pode saber o que terá valor dentro de alguns anos.
Este estado de inquietação perpétua é a revolução permanente do capitalismo, e eu acho que ele vai ficar conosco em qualquer futuro que seja realisticamente imaginável. Nós estamos apenas no meio do caminho de uma crise financeira que ainda deixará muitas coisas de cabeça para baixo.
As moedas e os governos provavelmente ficarão de ponta-cabeça, junto de partes do sistema financeiro que nós acreditávamos estar a salvo. Os riscos que ameaçavam congelar a economia mundial apenas três anos atrás não foram enfrentados. Eles foram simplesmente deslocados para os Estados.
Não importa o que políticos nos digam sobre a necessidade de controlar o déficit. Dívidas do tamanho das que foram contraídas não podem ser pagas. Elas quase que certamente serão infladas - um processo que está destinado a ser doloroso e empobrecedor para muitos.
O resultado só pode ser mais revoltas, em uma escala ainda maior. Mas isto não será o fim do mundo, ou mesmo do capitalismo. Aconteça o que acontecer, nós ainda teremos que aprender a viver com a energia mercurial que o mercado emitiu.
O capitalismo levou a uma revolução, mas não a que Marx esperava. O feroz pensador alemão odiava a vida burguesa e queria que o comunismo a destruísse. E assim como ele previu, o mundo burguês foi destruído.
Mas não foi o comunismo que conseguiu esta proeza. Foi o capitalismo que eliminou a burguesia.

6 de agosto de 2011

Não é estupro se for na Globo


Há alguns meses a arroba mais influente do Twitter, como Rafinha Bastos gosta de ser chamado, foi duramente criticado por fazer uma piada sobre estupro dizendo que “mulher feia quando é estuprada deveria agradecer”. Além dos ataques no Twitter, o Ministério Público decidiu investigá-lo por conta da piadinha desrespeitosa e de péssimo gosto. Nada mais justo. Estupro ou qualquer outro tipo de abuso sexual é algo nojento e criminoso. Além disso, uma “piada” como essa fere a dignidade de quem já passou por essa situação e dos seus familiares. Eu tenho um caso de estupro na família e me sinto ofendido quando vejo alguém banalizando algo tão grave.
Paralelo a tudo isso, a nova sensação do sempre engraçadíssimo e inovador Zorra Total [/ironia] conta da história de uma transexual e sua amiga feia que andam em um metrô lotado e suas desventuras cotidianas. Tudo isso em meio a um bordão que se popularizou rapidamente: Ai, como eu tô bandida!
 
O roteiro do quadro não muda: Janete encontra Valéria, elas comentam sobre a cirurgia de mudança de sexo de Valéria, fazem uma brincadeira de “você gosta?” – “gosto” até o infinito que irrita o telespectador e a personagem, Valéria dá meia dúzia de patadas e apelidos em Janete e, por fim, alguém abusa sexualmente de Janete no vagão lotado. Neste momento Valéria, muito debochada, diz pra amiga aproveitar o momento porque não é sempre que uma mulher como ela tem esse tipo de sorte. Ou seja, em meio a todas as claques e clichês que imperam no programa de sábado, ensinamos semanalmente que a mulher não deve reagir ou se ofender caso seja sexualmente abusada, e caso venha a sofrer um estupro, deve se sentir sortuda, pois nenhum homem gostaria de se envolver com uma mulher feia. Percebam que é exatamente a mesma piada que saiu da boca de Rafinha Bastos e foi absurdamente pisoteada. Porém na Globo sua projeção é outra, torna-se benéfico. Ignora-se o fato do desrespeito a dignidade. O pior de tudo: tal quadro alcança hoje 25 pontos no Ibope. Todo sábado a noite o mesmo roteiro ensina às mesmas pessoas que estupros e abusos sexuais são bençãos, e não devem ser denunciados.
Fica a pergunta: Qual a diferença do estupro de Rafinha Bastos e do estupro de Valéria e Janete? Nenhuma, salvo o poder de penetração da mensagem. Enquanto Rafinha atende a um público mais “elitizado” socio-culturalmente (afinal, ele é defensor do tal ‘humor inteligente’, apesar dos quilos de preconceito), o Zorra Total vai de encontro com um povo que provavelmente não teve acesso a informação e que utiliza na maioria das vezes a televisão como seu quadro negro involuntário. Os quadros subsequentes colocam a mulher como unicamente uma fêmea, um objeto sexual, ridicularizam o fato Presidência do Brasil estar nas mãos de uma mulher e passam uma hora semanal fazendo o retrógrado humor da mulher de pouca roupa, erotizando o telespectador. Esse é o mesmo programa que ensina que estupro é o novo ‘casar e ter filhos’. É um humor machista e misógino. Eu sinceramente não acho a menor graça dessa bandidagem da Valéria.
Aos que não sabem: hoje no Brasil, 43% das mulheres brasileiras sofrem violência doméstica; uma mulher é violentada a cada 12 segundos; a cada duas horas uma mulher é assassinada. E você vai continuar rindo disso?
Fonte: http://eusoqueriaestudar.wordpress.com/2011/08/02/nao-e-estupro-se-for-na-globo/

21 de julho de 2011

A pornografia é uma questão da esquerda


Feministas anti-pornografia se acostumaram com os insultos da esquerda. Mais e mais somos informadas de que somos anti-sexo, pudicas, simplistas, politicamente ingênuas, diversionistas e tacanhas. Os críticos mais rudes, não hesitam em sugerir que a cura para esses males está em, como digamos, uma sólida experiência sexual.
Além dos insultos, nós constantemente enfrentamos uma pergunta: Por que  perdemos o nosso tempo com a questão da pornografia? Uma vez que somos anti-capitalistas e esquerdistas anti-imperialistas, bem como feministas, não devemos nos concentrar  nas muitas crises políticas, econômicas e ecológicas (guerra, pobreza, aquecimento global, etc)? Por que gastaríamos parte de nossas energias intelectuais e de organização ao longo das últimas duas décadas prosseguindo na crítica feminista à pornografia e à indústria da exploração sexual?
A resposta é simples: Nós somos contra a pornografia precisamente porque somos de esquerda, bem como feministas.
Como  esquerdistas, rejeitamos o sexismo e o racismo que satura o mercado de massa  contemporânea da pornografia. Como esquerdistas, rejeitamos a mercantilização capitalista de um dos aspectos mais básicos de nossa humanidade. Como esquerdistas, rejeitamos a dominação das empresas de mídia e cultura. Feministas anti-pornografia não estão pedindo que a esquerda aceite uma nova maneira de olhar o mundo, mas em vez disso, argumentando por  consistência na análise e aplicação de  princípios.
Sempre pareceu-nos estranho que muitos da esquerda de forma consistente,  se recusam a se envolver em uma crítica sustentada e ponderada da pornografia. Tudo isso é particularmente desastroso num momento em que a esquerda está se debatendo para encontrar adesão por parte do público,  uma critica da pornografia baseada em uma análise feminista radical de esquerda que se contraponha aos direitistas moralistas, poderia ser parte de uma estratégia de organização eficaz.
Análise da mídia pela esquerda
Esquerdistas examinam a mídia como um local onde a classe dominante cria e impõe definições  e explicações do mundo. Sabemos que  notícias não são  neutras, que os programas de entretenimento são mais do que apenas diversão e jogos. Estes são lugares onde a ideologia é reforçada, onde o ponto de vista dos poderosos é articulado. Esse processo é sempre uma luta, as tentativas de definir o mundo pelas classes dominantes podem ser, e são, combatidos. O termo “hegemonia” é geralmente usado para descrever este sempre contestado processo, a maneira pela qual a classe dominante tenta assegurar controle sobre a construção de sentido.
A crítica feminista da pornografia é consistente com – e, para muitos de nós,  se origina de – uma análise amplamente aceita na esquerda ,  da ideologia  hegemônica  dos meios de comunicação, levando à observação de que a pornografia está para o patriarcado assim como os comerciais de tv para o capitalismo. No entanto, quando a pornografia é o tema, muitos na esquerda parecem esquecer-se da teoria de Gramsci da hegemonia e aceitar o argumento de auto-defesa do pornógrafo de que a pornografia é mera fantasia.
Aparentemente, a percepção comum da esquerda de que as imagens da mídia podem ser ferramentas para a legitimação da desigualdade, vale para uma análise da CBS ou  CNN, mas evapora-se quando a imagem é de uma mulher tendo um pênis enfiado em sua garganta com tanta força que engasga. Nesse caso, por razões inexplicáveis, não devemos tomar a sério as representações pornográficas ou visualizá-los como produtos cuidadosamente construídos  dentro de um sistema mais amplo de gênero, raça e desigualdade de classe. O  valioso trabalho realizado pela crítica sobre a política da mídia de produção, aparentemente, não tem valor para a pornografia.
A pornografia é fantasia, de uma espécie. Assim como programas policiais na tv  que afirmam a nobreza da  polícia e promotores como protetores do povo são fantasia.  Assim como as histórias de Horatio Alger de que trabalho duro são recompensados no capitalismo são fantasias. Assim como os filmes onde o elenco árabe são todos terroristas, são uma fantasia.
Todos esses produtos da mídia são criticados pela esquerda, precisamente porque o mundo de fantasia que eles criaram é uma distorção do mundo real em que vivemos. A polícia e promotores fazem, por vezes, a busca pela justiça, mas também reinforçam o regime dos poderosos. Os indivíduos no capitalismo prosperam  algumas vezes como resultado de seu trabalho árduo, mas o sistema não fornece a todos os que trabalham duro uma vida decente. Um pequeno número de árabes são terroristas, mas isso fica obscurecido na América branca quanto à humanidade da grande maioria árabe.
Tais fantasias também refletem como os detentores do poder querem que as pessoas subordinadas se sintam. Imagens de negros felizes nas plantações fazem brancos se sentirem satisfeitos na sua opressão aos escravos. Imagens de trabalhadores satisfeitos acalmam os receios capitalistas de uma revolução. E homens lidam com seus complexos sentimentos sobre a masculinidade contemporânea e sua tóxica mistura de sexo e agressão, buscando imagens de mulheres que gostam de dor e humilhação.
Por que tantos na esquerda parecem assumir que pornógrafos  operam num universo diferente do de outros capitalistas? Por que a pornografia seria a única forma de representação produzida e distribuída por empresas que não seria um veículo para legitimar a desigualdade? Por que os  pornógrafos  seriam os capitalistas rebeldes à procura de subverter o sistema hegemônico?
Por que os pornógrafos são, frequentemente, os únicos com livre acesso na esquerda?
Depois de anos enfrentando a hostilidade da esquerda em público e na imprensa, nós acreditamos que a resposta é óbvia: o desejo sexual pode restringir a capacidade das pessoas para a razão crítica – especialmente em homens no patriarcado, onde o sexo não é só prazer, mas sobre o poder.
Esquerdistas – especialmente os homens à esquerda – precisam superar a obsessão com escapismo.
Vamos analisar  a pornografia não como sexo,  mas como mídia. Onde é que se ligam?
A mídia corporativa
Críticas ao poder corporativo da mídia comercial são onipresentes na esquerda.Esquerdistas com diferentes projetos políticos podem se unir para condenar o controle dos conglomerados sobre notícias e entretenimento. Devido à estrutura do sistema, é um dado que estas corporações criam programas que vão de encontro aos interesses dos anunciantes e elites, não das pessoas comuns.
No entanto, ao discutir a pornografia, esta análise voa para fora da janela. Ouvindo muitos na esquerda defendendo a pornografia, poderíamos pensar que o material está sendo feito por artistas batalhadores que incansavelmente trabalham em sótãos só para nos ajudar a compreender os mistérios da sexualidade. Nada poderia estar mais longe da realidade.  A indústria da pornografia é apenas isso _uma indústria dominada por empresas de produção de pornografia que criam o material mainstream que corporações lucram distribuindo.
É fácil entender isso em troca de idéias entre os pornógrafos  _eles tem uma revista comercial  Adult Video News.  As discussões nela não tendem a se concentrar sobre o potencial transgressor da pornografia polissêmica dos textos sexualmente explícitos. Trata-se  _ que surpresa! _ de lucros. As histórias da revista não refletem uma consciência crítica sobre muita coisa, especialmente gênero, raça e sexo.
Andrew Edmond – presidente e CEO da Flying Crocodilo, uma empresa de pornografia de US $ 20 milhões  – coloca sem rodeios: “Um monte de gente arranja distração do modelo de negócios (o sexo). É tão sofisticado e multifacetado quanto qualquer outro tipo de mercado. Operamos como qualquer empresa da Fortune 500.”
As empresas de produção – a partir de grandes produtores, como Larry Flynt Productions aos pequenos operadores fly-by-night –  atuam como corporações no capitalismo, buscando maximizar a sua cota de mercado e o seu lucro. Eles não consideram as necessidades das pessoas ou os efeitos dos seus produtos, mais do que outros capitalistasRomantizar a pornografia faz tanto sentido quanto romantizar os executivos da Viacom ou da Disney.
Pornografia incrementa igualmente o lucro das grandes corporações de mídia. Hugh Hefner e Flynt tiveram que lutar par ganhar credibilidade dentro dos salões do capitalismo, mas hoje muitos das corporações lucram com a pornografia através da propriedade de empresas de distribuição a cabo e internet.  As grandes empresas que distribuem pornografia também distribuem mídia. Um exemplo é o NewsCop de Rupert Murdoch.
NewsCop é o grande proprietário da DirectTv,  que vende mais filmes pornográficos do que Flynt.  Em 2000, o New York Times relatou que cerca de US$200 milhões de dólares é gasto por ano pelos 8,7 milhões de assinantes com a DirectTV. Entre News Corp  e outras explorações de mídia estão a Fox e redes de TV a cabo, a Twentieth Century Fox, o New York Post e TV Guide. Bem-vindo à  sinergia:  Murdoch também é proprietário da HarperCollins, que publicou o best seller  pornográfico de Jenna Jameson “How To Make Love Like a Porn Star”.
Quando Paul Thomas aceitou o prêmio de melhor diretor na cerimônia de premiação  da indústria da pornográfica de 2005, ele comentou sobre a empresarialização do setor, brincando: “Eu costumava receber o pagamento em dinheiro dos italianos.  Agora eu sou pago com um cheque de um judeu… ” Ignorando as  cruas referências étnicas  (Thomas trabalha principalmente para a Vivid, cujo dono é judeu), o seu ponto era que o que antes era em grande parte uma multidão de negócios financiados agora é apenas uma outra empresa corporativa.
Como a esquerda se sente  acerca de empresas corporativas? Queremos executivos ávidos por lucros corporativos construindo a nossa cultura?
Mercantilização
Há muito que se compreendeu que um dos aspectos mais insidiosos do capitalismo é a mercantilização da tudo. Não há nada que não possa ser vendido no jogo capitalista de acumulação infinita.
Na pornografia os riscos são ainda maiores, o  que está a ser mercantilizado é crucial para nosso sentido de self. Qualquer que seja a sexualidade ou pontos de vista sobre a sexualidade, praticamente todos concordam que é um aspecto importante da nossa identidade. Na pornografia e na indústria do sexo em geral, a sexualidade é mais um produto para ser embalado e vendido.
Quando essas preocupações são levantadas, os esquerdistas pró-pornografia, muitas vezes correm para explicar que as mulheres da pornografia escolheram esse trabalho. Emboraqualquer discussão sobre a escolha deva levar em consideração as condições em que se escolhe, não contestamos que as mulheres escolhem, e como feministas respeitamos a escolha e tentamos compreendê-la.
Mas, no melhor de nosso entendimento, ninguém na  esquerda defende a mídia capitalista – ou qualquer outra empresa capitalista -apontando  os trabalhadores como tendo consentido em fazer o seu trabalho. As pessoas que participam da produção de conteúdo de mídia ou qualquer outro produto, consentem em trabalhar em tais empresas. E daí? A crítica não é sobre os trabalhadores, mas sobre os proprietários e estrutura.
Olhe para a maior estrela da indústria Jenna Jameson, que parece controlar a sua vida empresarial. No entanto, em seu livro, ela relata que foi estuprada na adolescência e descreve as maneiras pelas quais os homens que passavam por sua vida a cafetinavam. Seu desespero por dinheiro também vem à tona quando ela tentava conseguir um emprego como stripper, mas parecia muito jovem _ela entrou num banheiro e tirou o aparelho dos dentes com um alicate. Ela também descreve o abuso de drogas e lamenta os muitos amigos na indústria que perdeu para as drogas. E esta é a mulher que se diz a mais poderosa da indústria.
Entendemos que numa análise da esquerda, o foco não está nas decisões individuais sobre como sobreviver em um sistema que transforma tudo em mercadoria e retira-nos oportunidades significativas para controlar nossas vidas. É sobre a luta contra um sistema.
 Racismo
Como as formas mais gritantes e repelentes de racismo desapareceram da mídia, a esquerda tem salientado que as formas sutis sustentam o racismo, e que sua constante reprodução através da mídia é um problema. Raça importa e representações raciais da mídia, importam.
A pornografia é o único gênero de mídia em que o racismo declarado é aceitável.  Não é racismo sutil, codificado, mas o antiquado racismo americano _representações estereotipadas do garanhão negro do sexo masculino, a animalesca mulher negra, a latina quente, a gueixa asiática recatada. Fornecedores  de pornografia tem uma categoria especial, “inter-racial”, que permite aos consumidores exercer várias combinações de características raciais e cenários racistas.
O racismo do setor é tão abrangente que passa despercebido. Numa entrevista com o produtor do DVD “Black Bros and Asian Ho’s”, um de nós perguntou se ele já foi criticado pelo racismo da tais filmes. Ele disse: “Não, eles são muito populares.” Repetimos a pergunta: “Popular sim, mas as pessoas nunca criticam o racismo?” Ele olhou incrédulo; a questão aparentemente nunca passou pela sua cabeça.
Num tour por lojas de material pornográfico fica claro que justiça racial não é central para a indústria. É típica a declaração em filmes do tipo “Black Attack Gang Bang”: “Minha missão é encontrar lindas bonequinhas brancas para serem metidas com força  por alguns grandes e duros paus negros .” Seria interessante ver esquerdistas pró-pornografia argumentando para um público não-branco que estes filmes não estão relacionados com a política de raça e supremacia branca.
O mercado de produtores como Vivid utilizam principalmente mulheres brancas, o rosto oficial da pornografia é predominantemente branco. No entanto, paralelamente a este gênero existe um material mais agressivo em que as mulheres negras aparecem com mais freqüência. Como uma mulher negra na indústria nos disse: “Este é um negócio racista”, de como ela é tratada pelos produtores no dia-a-dia recebendo pagamento diferenciado nas negociações que ela tem no set.
Sexismo
O mercado de massa contemporâneo da pornografia heterossexual _ a maior parte de mercado de material sexualmente explícito _ é um local onde um significado particular de sexo e gênero é criado e distribuído. A mensagem central da pornografia não é difícil de discernir: mulheres existem para o prazer sexual dos homens, de qualquer forma que os homens quiserem o prazer, não importando as conseqüências para as mulheres. Não se trata apenas das mulheres existirem para o sexo, mas elas existem para o sexo que os homens querem.
Apesar de ingênuas (ou falsas) as alegações sobre a pornografia como um veículo para a liberação sexual das mulheres, a maior parte da pornografia de massa é extremamente sexista. A partir da linguagem ofensiva usada para descrever as mulheres, do  papel subordinado, à própria prática dos atos sexuais _pornografia é implacavelmente misógina. Como a indústria “amadurece” o mais popular gênero desses filmes _chamado “gonzo”, continua a empurrar os limites da degradação e crueldade para com as mulheres. Diretores reconhecem que não tem certeza até onde isso vai chegar a partir do nível atual.
Esta misoginia não é uma característica popular de alguns tipos de filmes, com base em três estudos sobre o conteúdo dos vídeos mainstreams/DVDs pornográficos dos últimos 10 anos, concluímos que o ódio à mulher é fundamental na pornografia contemporânea.Tire todos os vídeos em que uma mulher é chamada de vadia, puta, piranha ou prostituta, e as prateleiras estariam quase vazias. Tire todos os DVDs em que uma mulher se torna o alvo do desprezo de um homem e não sobraria muito com o que sair. Mercado de massa da pornografia não celebra as mulheres e sua sexualidade, mas manifesta o desprezo pelas mulheres e celebra o ponto de vista de expressar sexualmente esse desprezo.
Os de esquerda, normalmente rejeitam as análises biológicas deterministas para a desigualdade. Mas a história do sexo na pornografia é a história do determinismo biológico.O tema principal da pornografia é que as mulheres são diferentes dos homens e gostam de dor, humilhação, degradação, pois elas não merecem a mesma humanidade que os homens porque elas são um tipo diferente de seres. Na pornografia, não é apenas que elas queiram ser  fodidas de modo degradante, mas que elas necessitam.
Pornografia em última análise, conta historias sobre o lugar que pertence ás mulheres _abaixo dos homens.
A maioria da esquerda critica o patriarcado e rejeita o sistema de dominação masculina. Sexo é uma das arenas dessa luta contra a dominação e, portanto, uma arena de luta ideológica. Coloque a percepção da mídia junto com argumentos feministas sobre a igualdade sexual, e você terá um argumento antipornografia.
A necessidade de uma análise consistente do poder
Esquerdistas que de outra forma se orgulham dos sistemas de análise de estruturas do poder, se transformam em individualistas libertários extremistas quando o assunto é pornografia. O sofisticado pensamento crítico que subjaz a melhor das políticas da esquerda pode dar lugar a uma análise simplista, politicamente ingênua e diversionista que deixa a esquerda brincando de cheerleader para uma indústria exploradora. Nestes termos, não devemos analisar a ideologia da cultura e de como ela molda as percepções das pessoas sobre suas escolhas, e devemos ignorar as condições em que as pessoas vivem, pois tudo diz respeito a escolhas individuais.
Uma crítica da pornografia não implica que a liberdade enraizada na capacidade do indivíduo de escolher não é importante, mas argumenta ao contrário, que estas questões não podem ser reduzidas a esse momento de escolha de um indivíduo. Em vez disso, temos que perguntar:  O que é liberdade significativa dentro de um sistema capitalista que é racista e sexista?
Esquerdistas têm sempre desafiado  a argumentação dos poderosos de que a liberdade consiste em aceitar um lugar em uma hierarquia. As feministas têm destacado que um dos sistemas de poder que nos constrange é o gênero.
Defendemos que esquerdistas que tomam a sério o feminismo devem reconhecer que a pornografia, juntamente com outras formas de exploração sexual  _principalmente de mulheres, meninas e meninos, pelos homens _ no capitalismo é incompatível com um mundo em que pessoas comuns podem assumir o controle dos seus próprios destinos.
Essa é a promessa da esquerda, do feminismo, da teoria racial crítica, do humanismo radical – de todos os movimentos libertadores na história moderna.
Gail Dines is a professor of American Studies at Wheelock College in Boston. She can be reached at gdines@wheelock.edu.
Robert Jensen is a professor of journalism at the University of Texas at Austin. He can be reached at rjensen@uts.cc.utexas.edu.
They are co-authors with Ann Russo of Pornography: The Production and Consumption of Inequality. Both also are members of the interim organizing committee of the National Feminist Antipornography Movement.  For more information, contactfeministantipornographymovement@yahoo.com  or go tohttp://feministantipornographymovement.org/
Tradução Arttemia Arktos